Jornal de Campinas

UMA CRÔNICA PARA SÓCRATES 65 ANOS

UM SALADINO CONQUISTANDO JERUSALÉM

Luiz Roberto Saviani Rey

Muitas vezes fui ao Brinco de Ouro ou à Vila Famosa, a Belmiro, pelas mãos de meu pai e meu saudoso Tio Lula, menos para torcer pelo Guarani, mas para ver aquele que encheu meus olhos de lágrimas de felicidade e alegria desde minha primeira Copa do Mundo consciente, a de 1958. Pelé, até então, era para mim a essência do futebol, o referencial, o ícone, o símbolo, o índice, enfim a infusão de tudo em um símbolo icônico, porque Pelé e bola redonda (jogada redondamente e redondinha) tinha e ainda tem o mesmo significado e significante. Quero dizer, único! Reinava só! Absoluto! E assim foi ficando, à medida em que o vi jogar, até o dia em que bateu o pênalty no Andrada. Nesses tempos, eu era o torcedor ardoroso, de vestir camisa e levar bandeira para as arquibancadas. Brinco, Majestoso, Morumbi, Parque Antárctica, Javari, Maracanã, Mineirão e tantos outros pelo interland paulista e brasileiro. Então deu-se que, estando estabelecido como jornalista, atuando em várias editorias, um dia fui parar no futebol. Na casa em que orgulhosamente trabalhava, a Folha de S. Paulo, não tinha essa. Vai lá e cobre! E fui. E nessas andanças, cobrindo de tudo, inclusive futebol, andei bastante e me deparei com ele: Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira! Eu o vira jogar muitas vezes pelo Corinthians,eu o entrevistei em algumas oportunidades, e até tive um encontro casual (relato abaixo). Mas um presidente maluco queria trazê-lo para a Ponte Preta. Acho que foi em 1985. Carlos Vacchiano encenou trazer Sócrates da Fiorentina e achou de apresentá-lo com um corpo da Orquestra Sinfônica de Campinas, não me lembra mais os detalhes, cérebro, dobrado em velhas recordações, já quase Alzheimer. O plano não deu certo, mas eu o vi de uma maneira diferente e impressiva como nunca: Sócrates, uniformizado, subiu correndo do vestiário para o gramado, e eu atrás de sua sombra que se projetava dourada e brilhante rumo ao gramado do Majestoso. Deu uns passos, chutou umas bolas com elegância e distinção, e eu parei e pensei: “Como não vi isto antes? O Olimpo já não está só!”. Como não perceber esse detalhe divinal? Aquilo era um deus. Talvez não como o deus maior, mas nunca um semi-deus. Depois, lembrei-me com maior clareza daquelas passadas mágicas, que pareciam lentas, mas desconcertantes, os títulos paulistas, a Copa de 1982. e concluí: sem dúvida, ali reside um deus da bola, habitando aquele corpo esguio e lépido! Um deus tão importante quanto o que eu amei! Uma impressão que ficara retida em minha mente, e que não elaborei, quando eu o vi em uma churrascaria beira-estrada, em uma manhã-tarde de domingo, sentado à mesa carregada de picanha. Era a Democracia Corintiana, e ele dormira em casa. Vinha com amigos de Ribeirão Preto. Estavam em quatro, um deles era seu irmão, médico em Sumaré. Pedi para entrevistar e me convidou a sentar-me à mesa. Na mesa, quase desfeita, umas 20 garrafas de cerveja. Quatro horas depois, haveria um clássico contra o São Paulo, no Morumbi. Pensei: vai arriar! Às quatro, liguei a TV e vi descer do Olimpo a silhueta daquele que seria, não sei, o segundo melhor, o terceiro depois Dele… sabe-se lá, há controvérsias, mas, não importa, eu o vi jogar, correr com a elegância compassada e a magreza real e magistral, comendo a bola, traçando os passos como um compasso irreal, e arrasando o solo adversário, como um Saladino conquistando Jerusalém!

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