Jornal de Campinas

Famílias protestam sobre transferência inesperada de clínicas em meio ao tratamento de crianças com autismo

Criança observa a paisagem pela janela_Internet/Divulgação

Famílias da região de Campinas receberam telegrama on-line de planos de saúde e são obrigadas a retirar de forma repentina os filhos em tratamento

Em Campinas, recentes denúncias de famílias de crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista) têm surgido em relação à transferência obrigatória dos filhos com autismo para outras clínicas da cidade, condição exigida pelos planos de saúde, sem o consentimento das famílias. Essa mudança abrupta, além de se mostrar injusta, de acordo com os familiares, tem levantado preocupações quanto ao impacto negativo que pode ter no tratamento e bem-estar dessas crianças.

Uma das principais questões levantadas pelas mães afetadas é a falta de consideração pelos planos de saúde no cumprimento do laudo médico, liminares e decisões judiciais, assim como o fato de que seus filhos já estavam adaptados à clínica atual, que aplicava tratamento especializado em autismo – ABA (Análise do Comportamento Aplicada). A rotina estruturada, o ambiente familiar e a confiança estabelecida com os profissionais são elementos essenciais no tratamento de indivíduos com autismo. A quebra dessa estabilidade pode causar retrocessos significativos no progresso dos pequenos.

Ao ser questionada sobre sua reação ao receber a notícia com cerca de duas semanas de antecedência, Bruna Barbosa – de 37 anos, mãe de Thomaz, de 8 anos – diagnosticado com autismo, revelou que ficou extremamente abalada. Ela afirmou ter sido pega de surpresa ao abrir o telegrama:

“Essa transferência é totalmente irresponsável, enfatizou Bruna, expressando suas preocupações sobre o impacto da mudança súbita no progresso de seu filho. “Precisei de medicações para me acalmar e conter a crise de ansiedade.”

Mãe Bruna Barbosa e o filho Thomaz, de 8 anos/ Foto: arquivo pessoal

 

Outra família que foi surpreendida ao saber que seu filho seria transferido para uma clínica do plano de saúde sem o consentimento deles, foi a da dona de casa Andreia dos Santos – de 42 anos, mãe da criança diagnosticada com autismo – Rafael, de10 anos. Ela expressou sua reação inicial como “um vazio, sem chão, desespero, uma grande tristeza”, ao receber a notícia impactante.

“Estando seu filho já adaptado na clínica atual, confiando nos profissionais e com o tratamento em curso mostrando progresso”, Andreia expressou muita preocupação com a mudança repentina. “Sem contar a forma como a comunicação da mudança foi conduzida, o que também causou desconforto” contou. Após o e-mail, recebi uma ligação do Plano de Saúde informando sobre a mudança. Eu não concordei com a troca e questionei se minha opinião não importava.”

A importância da estabilidade e continuidade do tratamento para uma criança com autismo foi ressaltada pela mãe Andreia. Para ela, todos esses elementos são essenciais para o desenvolvimento contínuo de seu filho, destacando os benefícios já observados no atual local de tratamento. Andreia enfatizou: “Todo desenvolvimento ganho, a rotina, acolhimento, os profissionais todos alinhados por um só objetivo que é o desenvolvimento contínuo do meu filho – é isso que deve ser levado em consideração para manter o tratamento e progresso dele.”

Andreia dos Santos e o filho Rafael, de 10 anos/Foto: arquivo pessoal

Já Marina Terra, de 41 anos, mãe de Vitor, de 7 anos, diagnosticado com autismo, disse que recebeu a notícia da mudança por e-mail, o que a deixou ainda mais revoltada. Marina compartilhou: “Foi comunicado através de um e-mail no dia quinze de fevereiro bem impessoal, que no dia 1 de março já seria feita a transferência de clínica”.

A mãe Marina também ressaltou que seu filho estava extremamente adaptado à clínica atual, confiava nos profissionais e estava progredindo no tratamento. Ela teme que a mudança repentina e a quebra da rotina estabelecida prejudiquem não só o progresso do filho, mas também toda a família. Em suas próprias palavras: “A mudança será bastante prejudicial, primeiro por quebrar a rotina já estabelecida há 5 anos, e segundo porque ele está recusando a mudança”.

 

Marina Terra com a família e o filho Vitor, de 7 anos/Foto: arquivo pessoal

 

Desrespeito ao laudo médico

As denúncias das famílias levantam sérias questões sobre a importância de seguir o laudo médico no encaminhamento de crianças com autismo para clínicas adequadas, especialmente aquelas que ofereçam tratamento especializado em ABA (Análise do Comportamento Aplicada) e possuam profissionais capacitados. Além disso, as famílias lembram que é vital que as clínicas proporcionem um ambiente natural para a criança com autismo, considerando suas necessidades individuais.

Segundo a médica psiquiatra especialista em infância e adolescência, Dra. Jennyfer Domingues, a transferência de crianças com autismo de uma clínica para outra sem o consentimento da família é uma situação delicada e que requer atenção especial. “Nesses casos, o papel do laudo médico é crucial, ao confirmar o diagnóstico e encaminhar corretamente a criança com autismo para clínicas especializadas em ABA e com profissionais especializados”, comentou a médica. “O laudo, realizado por médicos especializados, confirma o diagnóstico, proporciona uma visão detalhada das necessidades comportamentais da criança e cobre aspectos médicos, comportamentais e considerações relevantes individuais. Essa base científica é fundamental para direcionar o tratamento de forma personalizada e eficaz. No caso do autismo, a Análise do Comportamento Aplicada (ABA) é amplamente reconhecida e recomendada como uma intervenção eficaz. Essa abordagem terapêutica se baseia na ciência do comportamento, visando aprimorar habilidades sociais e comportamentos adaptativos e reduzir comportamentos desafiadores por meio de intervenções individualizadas, sistemáticas e intensivas aplicada por profissionais capacitados.”

Segundo a psiquiatra especialista em infância e adolescência, a transferência repentina de uma criança com autismo de uma clínica para outra, sem considerar devidamente o laudo e as necessidades específicas da criança, pode resultar em regressão e crises significativas. É fundamental que haja um planejamento cuidadoso e uma transição gradual, garantindo que a mudança seja feita no melhor interesse da criança e com o mínimo impacto possível em seu desenvolvimento.

Quando se trata dessa migração, a médica Dra. Jennyfer Domingues destaca a necessidade de estratégias bem planejadas para garantir uma transição suave, sem estresse, evitando transtornos, regressões e crises, ao respeitar a dessensibilização do novo ambiente, para o bem-estar e progresso da criança. A psiquiatra menciona a importância da introdução gradual, manutenção de rotina consistente, envolvimento dos pais/cuidadores, suporte dos terapeutas e comunicação entre profissionais. Essas medidas baseadas em evidências científicas visam minimizar o estresse da criança durante o processo de transição.

Diferente das estratégias planejadas com as famílias – como deveria ser o ideal no momento da transição – assim como as mães relatam, não só a comunicação repentina, a falta de consentimento, como também como a obrigatoriedade na transição não estão sendo requisitos respeitados e organizados com as famílias.

A mãe Bruna destacou que seu filho já está adaptado na clínica especializada atual, confia nos profissionais e o tratamento está progredindo. Bruna destaca ainda a capacitação e certificações dessa clínica, essenciais para o tratamento do autismo. A mudança repentina é encarada por ela como algo que afetará negativamente o progresso que seu filho vinha alcançando. “Meu filho já está com esta equipe há quase 4 anos, ele é autista nível 2 de suporte e tem uma rigidez muito grande, o que dificulta muito qualquer tipo de mudança. Hoje ele está 100% adaptado com a rotina, essa transferência é totalmente irresponsável. Não estão pensando no bem-estar do meu filho e nos prejuízos que podem ocorrer.”

Além disso, a confiança que as crianças com autismo depositam nos profissionais que as acompanham é crucial para o desenvolvimento de um vínculo saudável e para o sucesso das terapias utilizadas no tratamento. A transferência repentina acarreta não só a interrupção desse processo, mas também a possibilidade de gerar traumas, crises e inseguranças nas crianças, que terão que se readaptar a um novo ambiente e a novas faces desconhecidas.

Quando questionada sobre a mudança repentina sem comprovação de necessidade, a psiquiatra Dra. Jennyfer destaca os riscos envolvidos. “Mudanças abruptas podem interromper o progresso da criança, causar desregulação emocional, descontinuidade no tratamento, quebra de vínculos e a necessidade de adaptação. É importante evitar mudanças bruscas sempre que possível, planejando e implementando transições cuidadosas, assim como garantindo a continuidade do laudo médico para assegurar o progresso das crianças autistas.”

Sobre essa situação, a mãe Marina enfatizou a importância da estabilidade e continuidade do tratamento para seu filho, na clínica atual. Ela destacou os benefícios que ele obteve devido ao suporte e adaptação da clínica às suas necessidades específicas. “A clínica que meu filho faz tratamento atualmente nos dá um suporte sempre que precisamos. Houve um desenvolvimento muito rápido, meu filho não interagia, não falava, não olhava para a gente, não respondia quando chamado, tinha muita seletividade alimentar, e hoje está muito mais desenvolvido nesses aspectos e acredito que por isso os vínculos e a confiança nos profissionais precisam ser mantidos, bem como o respeito à individualidade do meu filho, não sendo tratado como mais um, e sim, tendo suas especificidades atendidas.”

Descumprimento judicial

O caso, que envolve a mudança sem consentimento prévio, traz à tona questões éticas e legais sobre o tratamento das crianças com autismo, que estão em programas especializados em tratamento comprovado cientificamente, como ABA (Análise do Comportamento Aplicada).

A obrigatoriedade dos planos de saúde em cumprir liminares e decisões judiciais é essencial para garantir o acesso contínuo e adequado a tratamentos específicos, como o ABA, que exigem profissionais capacitados e certificados internacionalmente. A mudança abrupta para uma clínica que não oferece o tratamento adequado em um ambiente desfavorável pode prejudicar o desenvolvimento das crianças com autismo.

A advogada Cristina Rocha, especialista em Inclusão e Direitos da Pessoa com Deficiência pela CBI of Miami, aborda os aspectos legais relacionados às denúncias das famílias. Segundo ela, em caso de descumprimento de uma liminar ou decisão por parte do plano de saúde, os pais ou responsáveis podem buscar amparo na própria decisão judicial: “Uma decisão judicial, seja ela definitiva ou de caráter liminar, deverá ser cumprida, caso contrário, configurará descumprimento de uma ordem judicial, com consequências, desde uma multa diária pelo descumprimento, até o ensejo de medidas coercitivas que obriguem o plano de saúde a cumprir tal determinação.”

No que diz respeito a possíveis medidas legais diante da tentativa de migração abrupta de crianças com autismo para uma clínica que não ofereça o tratamento em ABA recomendado, a advogada Dra. Cristina Rocha destaca: “É necessária a comunicação imediata ao juiz, com todas as provas desta tentativa de ruptura de um tratamento que já vem sendo realizado e que, por muitas vezes, já foi criado o vínculo terapêutico, que é uma ferramenta tão importante para a evolução do tratamento do autista”.

Quanto ao descumprimento de uma liminar por parte do plano de saúde, ao encaminhar crianças com autismo para uma clínica sem profissionais certificados em ABA e tratamento em ambiente natural, a advogada explica a necessidade de comprovar a existência e disponibilidade de profissionais qualificados, cabendo ao plano de saúde este ônus, devido à relação de consumo e tendo em vista o autista ser considerado parte hipervulnerável ao processo.

“Em caso de falta de comprovação, o plano deve fornecer o tratamento conforme indicado no laudo médico, mesmo que fora de sua rede credenciada, arcando com os custos de forma integral”, afirma a Dra. Cristina Rocha.

Nesse contexto, torna-se evidente a necessidade de investigar as motivações por trás dessa transferência e o possível descumprimento da liminar em prol de supostos interesses financeiros por parte dos planos de saúde. A preocupação com os altos custos dos tratamentos especializados pode estar influenciando decisões que vão contra o melhor interesse das crianças, comprometendo sua qualidade de vida e desenvolvimento.

 

Ambientes naturais para o progresso do tratamento

No que diz respeito à escolha de clínicas especializadas em ABA, a psiquiatra Especialista em Infância e Adolescência, Dra. Jennyfer Domingues, enfatiza a importância de ambientes naturais para o progresso do tratamento: “A prática da ABA em ambientes naturais oferece à criança com autismo a oportunidade de adquirir e aplicar habilidades em contextos do mundo real, promovendo assim uma transição suave do ambiente terapêutico para a vida cotidiana. A interação com pares em ambientes naturais, como a escola ou o parque, é um componente essencial para o desenvolvimento social, fortalecendo relacionamentos e fomentando um sentido de pertencimento e inclusão. Além disso, ambientes naturais proporcionam experiências sensoriais ricas e oportunidades para atividades físicas, contribuindo significativamente para o bem-estar físico e emocional da criança. A prática de habilidades de segurança em ambientes naturais, como atravessar a rua com segurança, é mais eficaz quando realizada em situações reais.”

E na contramão dos ambientes naturais indicados para o progresso da pessoa com autismo, os planos de saúde informam às famílias que a nova clínica seria especializada para o tratamento das crianças com TEA, no entanto, as mães que já tiveram os filhos atendidos temporariamente pela clínica do plano de saúde expressam uma visão diferente.

Segundo relatos das mães, a preparação física e técnica do serviço está longe de atender de forma adequada às necessidades específicas dos filhos. A falta de profissionais qualificados e de um ambiente propício ao real desenvolvimento e bem-estar das crianças e suas famílias têm sido uma constante preocupação. A mãe Bruna reforça que o filho já está adaptado à rotina e aos profissionais atuais, os quais possuem capacitação e certificações essenciais para o tratamento do autismo. Ela ressaltou a falta dessas qualificações na clínica para a qual foram transferidos. “Meu filho já passou anteriormente por uma clínica do próprio plano e já sei da falta de qualificação do tipo de atendimento que recebi e receberia.”

Além disso, a suposta gestão completa e contínua do paciente, prometida pelos planos de saúde, de acordo com as mães, não se concretiza na prática. As famílias apontam falhas na continuidade do acompanhamento, na falta de uma visão detalhada da evolução dos filhos e na ausência de uma abordagem de tratamento ampla e coordenada.

Diante da situação, a mãe Marina está lidando com diversas emoções e preocupações, afetando sua vida profissional e pessoal. Ela, inclusive, está preocupada com o espaço físico oferecido na nova clínica. “Na clínica do plano de saúde os espaços são pequenos, chega a ser claustrofóbico, penso em como meu filho se sentira nesses espaços reduzidos por longo período, por ser autista.”

 

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