Se uma mulher que vive no mundo muçulmano desejar tomar banho de mar, poderá fazê-lo, mas sob panos, completamente encoberta. Essa mulher não faz contas sobre o significado do seu vestir, apenas veste completamente seu corpo. É, ou parece-lhe ser, da “natureza” das coisas. Uma brasileira considerará essa situação absurda. Aqui a mulher vestirá sua calcinha e seu sutiã e irá livremente à praia. A brasileira, igualmente, todavia, não refletirá sobre o vestir-se. Vestir-se-á e ponto, como se seu traje fosse o do mundo. Uma muçulmana característica dificilmente terá condições de questionar as razões de seus trajes. Já qualquer brasileira comum poderia discutir os motivos dos seus, mas apenas uma que outra o fará. A brasileira convencional trajará o que for moda; não matutará sobre aderir ou não ao que “se está usando”. Na maior parte das praias europeias basta a calcinha. O sutiã é repressão já não aceita. A maioria das europeias típicas tem uma posição crítica sobre sua relação com os trajes, de praia ou não: sabe exatamente o que usa e decide sobre suas vestes conforme sua vontade, não se submetendo, nem à tradição, nem à moda. Que força move essas mulheres a se comportarem como tradição, ou como moda, ou como vontade? Se dissermos que assim é porque há religião e machismo no mundo muçulmano e restos de machismo e de religião no Brasil, estaremos corretos. Mas, então, caberia novamente indagar: que força move as pessoas a se comportarem por códigos machistas, conforme tradições repressoras ou crendices religiosas? Interessa-me a subjacência, o que está por trás dos comportamentos. Ideologia, essa é a força subjacente a tudo o que fazemos em nossas relações privadas ou públicas. A ideologia fornece os códigos de leitura do mundo, os meios de compreensão da realidade. Sem ideologia não me relaciono com as circunstâncias, não as compreendo, não atuo sobre elas. Elas propiciam meu nexo com o mundo. A ideologia compõe a minha vida ao tempo mesmo em que me circunscreve nos limites de um tipo específico de vida. Ainda que todo indivíduo esteja seguro de ser protagonista de suas circunstâncias, cada um de nós está “alocado” dentro de contornos gerais ditados por costumes, valores, crenças, numa palavra: por uma ideologia. Edito de Liberdade Privada e Ideologia, Editora Acadêmica, de minha autoria, algumas citações atinentes, (referências na obra, disponível em Jusbrasil e Emporiododireito), as quais elucidam melhor o tema. Para Roy Macridis, “uma ideologia consiste em um conjunto de ideias e crenças através das quais percebemos o mundo exterior e atuamos sobre nossa formação. Consiste de ideias compartilhadas por muitas pessoas que agem juntas ou são influenciadas a agir juntas de forma a alcançar fins postulados”. Daniel Bell considera que “a ideologia é um compromisso com as consequências das ideias. A função latente mais importante da ideologia é mobilizar a emoção. As respostas estão prontas, e são aceitas sem reflexão”. Conforme Nelson Jahr Garcia, a função da ideologia “é a de formar a maior parte das ideias e convicções dos indivíduos e, com isso, orientar todo o seu comportamento social, integrando o maior número de pessoas que, aceitando os mesmos valores e normas, atuem numa mesma direção”. Deve-se entender que a pessoa não cria nem decide sobre uma ideologia. Pelo contrário, é uma totalidade ideológica que produz o indivíduo, ou mesmo o grupo. Quer dizer: não somos exatamente livres para escolher o que vamos pensar, logo, como vamos agir em decorrência do pensamento circulante que nos alcançou. Sílvia Maurer Lane alerta que “a produção da ideologia não se dá conscientemente, mas sim em decorrência de uma visão da sociedade da posição de quem a domina e que precisa justificar e valorizar sua dominação”, sem que haja uma opção pessoal entre deixar-se envolver, ou se manter afastado ou infenso. Na roupa de praia feminina não está em questão, pois, apenas um traje. Há um conceito de si, uma apreciação pública justificadora, uma compreensão de corpo, uma ideia de gênero, uma tradição, uma submissão, uma indústria de moda, uma interdição ou um incentivo à exposição, um jeito mais rebanho ou mais próprio de se portar. No traje aparentemente “tão natural” há imposição, manipulação ou escolha. Há um modo de compreensão e relacionamento com o mundo. Há uma maneira de existir, de viver a vida. Pense, então, na próxima vez que for ao mar (ou a qualquer lugar), sobre que conteúdos ideológicos vão “vestidos” em você. Léo Rosa de Andrade Doutor em Direito pela UFSC. Psicólogo e Jornalista. |